Comentários sobre BESOURO

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Comentários sobre BESOURO, de João Daniel Tikhomiroff
(página oficial do filme: http://www.besouroofilme.com.br)

Bruno Rodolfo Martins

O filme Besouro teve uma campanha de propaganda bem diferente das de outros filmes brasileiros. Bastante antecipada e criando certa expectativa entre espectadores “leigos”, cinéfilos e em especial no contingente capoeirista. O porquê desta campanha? Eu não sei. Não pretende ser um documentário, cheio de apanhados históricos, mas às vezes fica confuso identificar as intenções do roteiro, afinal, é um filme de ficção.

É no Recôncavo Baiano, terra que tradicionalmente é rica em capoeira, em pessoas e histórias que dizem respeito a ela, que se passa todo o filme. O recorte é o começo do século XX, tempo em que Besouro viveu. Poderíamos dizer que este período “pós-abolição” foi um tempo de grande repressão de manifestações “afro-descendentes” pelo Estado, que desejava “esquecer o passado negro” do Brasil e tornar o país cada vez mais “branco”. Nas grandes cidades do litoral este fenômeno foi fácil de ser percebido, mas pelos interiores, nem tanto. Como se todo o sistema de exploração continuasse da mesma forma.

Existem muitas lendas sobre Besouro: ele teria sido um exímio capoeira, de certa forma rebelde. Sua fama se tornou tão grande que se perdeu sua referência histórica. “Bala não matava, navalha não lhe feria”, tinha o corpo fechado, se transformava num besouro quando necessário e, entre outras, enfrentava vários cabras ao mesmo tempo e saindo vitorioso. É lembrado em toda capoeira através das músicas. Ainda temos as declarações de pessoas da capoeira que confirmam Besouro em carne e osso, como por exemplo, Mestre João Pequeno de Pastinha (que viveu em Araci, no entorno de Serrinha e Tucano), que relata que seu pai era primo de Besouro. Para não restar dúvidas...

Não foi à toa que chamaram o mesmo profissional de “O tigre e o dragão” para dar conta dos efeitos especiais nas lutas; sem dúvida se transformou num filme de ação de luta em estilo “clássico” dos de kung fu, mas com uma cara bem brasileira.

Sabemos que seria uma ficção, baseada em lendas mais do que em fatos, mas certos aspectos históricos que poderiam dar suporte ao conhecimento sobre a capoeira, assim como do próprio contexto da época e do personagem principal, tiveram uma forma quase caricatural, também clássica e brasileira: ora os negros são submissos, quando não, são aqueles revoltados ao extremo (a já tradicional dicotomia “preto-velho” X “zumbi dos palmares”); a mostra de estratégias de resistência - que poderiam ser melhor exploradas (como nos casos de convivência e de negociação permanente com as estruturas de poder branco); algumas generalizações tensas, por exemplo, como a consideração de que todas as pessoas negras teriam consciência política e coragem para lutar, ou como se todos os descendentes de africanos possuíssem um mesmo modo de compreender a vida espiritualmente. Entre outros, estes são apenas alguns apontamentos sem demora.

Mais complicado, quem sabe, foram os anacronismos consolidados sobre história da própria capoeira – que podem causar imensa confusão para toda pessoa que estuda pouco a capoeira. Sabemos que naquela época não havia “oficialmente” estilos de capoeira, e por isso, é muito difícil fazer esta avaliação que segue. Mas a capoeira angola e a capoeira regional foram inventadas num mesmo contexto, com seus frutos hoje. Em outro certo momento de nossa história pelo século XX, surgiu algo que poderíamos chamar de capoeira “contemporânea”, que tentava unir aqueles outros dois estilos. Como saber que tipo de capoeira era jogada naquele tempo e naquele local específico? Bem, o que podemos dizer é que, sem dúvidas, o golpe “meia-lua de compasso” não é dessa época, mas mesmo assim foi mencionado no filme. Ao mesmo tempo, em questão ritual, aparenta sempre ser um encontro de capoeira regional: uma roda com um berimbau e uns pandeiros básicos. No entanto na hora do jogo, começa-se lento (fazendo menção à angola) e depois aumenta-se o ritmo (menção à regional) – ritual este definitivamente “contemporâneo”. Parece que o que chamamos de “mandinga” ou a “malícia” no jogo nem foram lembradas.

Um ponto muito importante é o reforço de que a capoeira teria surgido no Recôncavo, em plantações extensas, e como uma prática de brincadeira que esconde a luta. Não menciona outras grandes cidades litorâneas, no mesmo período ou em anteriores – o que poderia tendenciar o imaginário dos expectadores com relação às “origens” da capoeira.

O filme também parece que foi estruturado como um manifesto negro, ou como um manifesto dos movimentos negros. Todos os “negros” que superam ou transformam seus “status” são sempre “revoltados”, “rebeldes”, “capoeiras” e “macumbeiros”? Todo negro deve se identificar com estas culturas necessariamente? Existe uma “cultura negra”? Contudo, é evidente que estas culturas são e foram negligenciadas pelo olhar branco eurocentrado e segregacionista que conduz a maior parte das mídias. É sem dúvida, compreensível o aproveitamento de um filme com uma temática brasileira, “(ex-)escrava”, “negra”, “afro-descendente”, “pobre”, para trabalhar mesclando outras culturas de excluídos de nosso sistema social. Mas, apesar disso, a associação do candomblé à capoeira merece um debate maior e consistente... pergunte a qualquer “zelador” ou “mestre” de capoeira se existe alguma relação direta entre ambas; todos irão dizer que não, mas não irão dizer que não existe uma conexão do tipo “espiritual” entre o ritmo, as pessoas, a roda, a terra, os movimentos...

Outra observação quanto a isso é a menção ao candomblé de Ketu, que cultua os orixás... como se todo candomblé fosse de Ketu, como se todos cultuassem orixás. Sabemos que existem vários candomblés diferentes, assim como outras manifestações “religiosas” remanescentes de África pelo Brasil. Inclusive boa parte das representações dos orixás incluídas no filme são interpretações muitas vezes brancas, advindas de visões kardecistas que influenciaram a Umbanda, curiosamente na mesma época – o começo do século XX. “Por acaso”(?), Besouro “incorpora” em outras personagens da história.

Podemos observar, no entanto, que em muitas guerras anticoloniais pela África, por exemplo, as “religiões” tradicionais foram usadas muitas vezes como “ópio do povo”, confortando ou amenizando as dores que se seguiam. Como alienação propriamente dita. Mas em outros momentos, a questão “religiosa” era usada para fortalecer e unir determinados povos contra a exploração e invasão colonial, tendo papel importante na resistência e no enfrentamento político e corporal. Cabe atentar que, sob as óticas africanas sub-saarianas (ou da “África Negra”), não existe a separação de momentos da vida: todos os momentos são sagrados e profanos simultaneamente. Ou seja, quando falamos em “religião”, estamos utilizando um ponto de vista europeu, branco e cristão, em que existiriam momentos distintos para cada coisa em nossas vidas... o simples fato de falar em religião já demonstra isso. Para povos que comungam com “a natureza” em harmonia, isto seria uma redundância.

Existem alguns aspetos psicológicos, como dilemas entre egos, com uma ênfase numa discussão sobre vaidade, que sempre “derruba” as pessoas. Outro aspecto deste, mas que poderia ter sido dispensado é a relação romântica do trio principal, entre a menina dos “cachinhos”, Quero-quero e Besouro, havendo traição, inveja, intriga, entre estas pessoas amigas e que cresceram juntas. E que culminaria no desfecho de morte de Besouro. O aspecto messiânico que atribuíram a Besouro poderia também passar longe do filme, mas...

Dá uma sutil impressão que toda revolta se faz solitariamente, individualmente e por conseqüências de predestinação e forças cósmicas.

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