Racismo nas entrelinhas da escola pública

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Em 2010, após dois anos trabalhando com propostas “alternativas” numa escola estadual, resolvi firmar não só conteúdos marginais à disciplina que leciono, Educação Física, mas incluir definitivamente a temática racismo nestas aulas, e desdobramentos que se mostrassem pertinentes a esta proposta. Foram dois anos, somando o terceiro com este que passou, incluindo e problematizando (ao menos, tentando) tradições populares na escola pública, em especial com o público do nono ano. Tornaram-se comuns comentários entre estudantes - como “isto é macumba”, às vezes em tons afirmativos, interrogativos ou exclamativos. Até então, trabalhava questionando tais comentários, mostrando definições de uma ou outra coisa para que o conhecimento viesse, para em seguida o reconhecimento e a baixa do preconceito diante de manifestações tradicionais (normalmente de raízes étnicas originárias de culturas nativas de Abya Yala – “Américas” – ou de África). Neste ano de 2010 foi diferente, pois para além disso, inclui “teoricamente” o debate em sala de aula, e junto à “prática” utilizei as avaliações para poder incentivar as turmas a participarem, acreditando que ao viverem estas manifestações, teriam a oportunidade de se livrarem de estereótipos, preconceitos, discriminações ou qualquer outra atitude e comportamento que pudesse inferiorizar estas culturas e as pessoas que as vivem. Notando ainda que esta escola tem um público majoritário de descendentes de indígenas e de africanos, e se consideram cristãos, em especial pentecostais ou neopentecostais. Em todas as aulas a participação das turmas era maciça, com um ou outro estudante assumindo a postura responsável de não participar e por isso não ter os “pontos” de avaliação correspondentes. Eis que surge um caso peculiar: um estudante pede para fazer uma avaliação alternativa, alegando que sua religião não permitira dançar. Explico cautelosamente a importância da atividade e de sua participação, e que a avaliação estava pautada na efetiva participação, e que se ele não participasse não poderia ter uma avaliação alternativa – isso seria uma bonificação. E já se delineava o problema de manutenção de preconceitos, já que se quer “podia” vivenciar as atividades. Noto também que o mesmo estudante nem participava de outras atividades durante o ano, mas a partir do momento que se instalou o quadro das tradições populares, logo veio uma reação. Com o passar das aulas e vendo que sua empreitada não iria funcionar - eu, enquanto pessoa e profissional, estava convicto na minha proposta - resolveu apelar para a coordenação da escola, levando responsável e a constituição do país e do estado, alegando que estava havendo “preconceito de credo” de minha parte e exigindo uma avaliação alternativa. Ora, agora ele estava sendo prejudicado devido às crenças que ele possui? Pois bem. Após o primeiro debate, incluindo uma reunião docente, a coordenação estava inclinada a defender os argumentos do estudante, sem um maior quadro de debate, afim até de evitar problemas em seus desdobramentos – afinal, era e ainda é preciso argumentos muito bem fundamentados para bancar minha posição crítica. Naquela reunião percebi que realmente precisa insistir, firmar, e ir adiante com os desdobramentos que poderiam vir. O estudante nunca mais comentou sobre o assunto, esperando que eu o procurasse com sua avaliação alternativa pronta, mas não ocorreu. Tempos depois a coordenação voltou a me procurar, afim de saber a quanto andava minha posição e lhe disse que era a mesma; e apontei a partir daquele momento diversos argumentos, afim de mostrar o quanto de preconceitos e até de certa ingenuidade ou malícia existia da parte do estudante. O final disso tudo é que ele passou de ano, por seus próprios esforços ou não-esforços, não era um estudante “ruim”... mas ainda sim, nossos objetivos não foram alcançados com ele, ele não estava disponível. E para ajudar profissionais de educação, em especial de Educação Física, aí vão alguns argumentos que usei, inclusive parte deles já fazia parte do conteúdo da disciplina naquele ano.

Alguns preconceitos identificados:
1.o que é educação física?
- Não saber o básico dessa área é um problema comum entre professores, infelizmente, e no ambiente escolar ainda é mais crítica a situação: se resume a esporte, bola, quadra. Em especial, a prática ainda muito presente desde os anos iniciais - o “rolar bola”, que é fazer sempre o que as turmas desejam em detrimento do trabalho sério e comprometido com a qualidade da educação e das intervenções pedagógicas. Desconhecer que a área tem seu campo de estudo entre o corpo e o movimento pode limitar demasiadamente o vivido corporal das pessoas que ali, na escola, estão para ampliá-lo.
2.pra que serve a escola?
- Outra questão que parece boba, mas tem estudante que acha que está ali para conversar. O fundamental da escola é o trabalho, não o alienante, mas aquele que melhora a sua própria intervenção no mundo. Estudantes estão ali para “aprender” (como estes mesmos declaram), tudo aquilo e mais um pouco que em outras situações específicas da vida não poderiam ter como oferta. Conhecer o que não se conhece, para poder também respeitar ou simplesmente saber discernir entre os mundos que existem.
3.a escola pública é laica!
- Ignorar que a escola não professa nenhuma religião, não defende nem ataca, é justamente o que se tem acontecido muitas vezes e em muitas escolas públicas. A laicidade do Estado é a laicidade da escola. Justamente o direito de cada um ter sua crença e/ou sua religião é que permite estarmos debatendo estas numa escola, sem favorecer nem prejudicar ninguém baseado nesse direito. Há também o dever de cada pessoa em aceitar e respeitar o do outro, não significando que tem que agir conforme o outro achar melhor, mas sim agindo diante das leis que são comuns a todos, independentemente.

Especificando:
4.por que a participação é tão importante nas aulas de educação física escolar?
- É justamente na atitude e no comportamento participativo, ou melhor, quando se é ativo ou quando se está em atividade, é que podemos concretizar os conhecimentos que perpassam a área, na forma clássica, vamos dizer. E quando se trata de movimento e corpo, estamos falando dos meios mais básicos de relacionamento com o mundo e com o outro; para romper padrões emocionais nada melhor que se movimentar de forma diferente daquela que cada um tem feito. Ou seja, se não participa das aulas, como pode mudar algo estando parado?

Democraticamente falando:
5.todos são iguais!
- O tratamento diferente gera desigualdade.

Sobre família e sua intervenção na educação escolar de seus estudantes:
- Será que as famílias hoje, em especial, daqueles estudantes de escola pública, têm se interessado verdadeiramente pelos seus estudos?
- Estas ajudam os estudos? Incentivam? Ou só aparecem na escola para uma convocação por “indisciplina” ou para exigir “direitos”, sem os devidos deveres que precisam cumprir?
- Sabe quanto tempo de seus estudantes é dedicado para os estudos em casa?
Vejam que as desigualdades e o racismo andam muito próximos, e se camuflam nas instituições e nas mínimas ações cotidianas de cada pessoa, dentro e fora das aulas.

Bruno Rodolfo Martins
Professor da Rede Estadual e Municipal do Rio de Janeiro – disciplina Educação Física
Especialista em História da África e da Diáspora Africana no Brasil
Especializando em Gênero e Sexualidade
Grupo de Pesquisa Cavalo Marinho Boidaqui
Associação Cultural Ilê Mestre Benedito de Angola

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